No dia 18 de junho a aguardada encíclica Laudato Si (Louvado Seja) do Papa Francisco foi lançada e, logo em seguida, tornou-se um dos assuntos mais comentados em todas as redes sociais. Abordando a questão da crise ambiental, o documento integra-se ao Ensino Social da Igreja, alinhando-se a encíclicas como Rerum Novarum que, no calor da Revolução Industrial, lançava um contundente clamor pela dignidade e justiça junto aos trabalhadores das fábricas. Não há dúvida que o problema ecológico apresenta o mesmo impacto sobre as relações humanas que a Revolução Industrial e, assim como na época, parece ser custoso aos contemporâneos desta questão dar-se conta de sua urgência e gravidade. Pior: aqueles que há tempos denunciam e alertam quanto a esta questão, comumente são classificados como paranóicos e, sendo mais específicos, “ecochatos”. Por isso, ao mesmo tempo que a encíclica de Francisco é entusiasticamente acolhida pelos setores mais progressistas e politicamente engajados da Igreja Católica e de outras Tradições Religiosas, bem como por ecologistas e pesquisadores da área, é também rejeitada pelas alas eclesiais mais reacionárias, tradicionalistas e conservadoras, que cobram do Pontíficie um posicionamento mais doutrinal e menos sociológico. Pior: estes mesmos setores manipulam e mascaram o conteúdo do documento, transformando as palavras de Francisco em uma ode conservadora, que demoniza o mundo e as relações sociais. O buraco, porém, é bem mais embaixo.
O problema ambiental não é uma simples questão de discussão política ou de ajuste técnico do planeta ao ser humano. A Ecologia talvez seja o novo grande paradigma civilizacional que precisemos assumir para finalmente nos reconhecermos na Pós-Modernidade. Obviamente não estamos nos referindo à simples postura de conservação ambiental, necessária, mas insuficiente: ao falarmos em Ecologia, temos em mente a radicalidade desta palavra e seus desdobramentos relacionais para todos que habitam a Terra. Se somos “lentos para entender” (Lc 24, 25) estas coisas todas, porém, novamente é a expressão artística que se adianta, captando crises e metamorfoses e expressando-as simbolicamente para que, “quem tiver ouvidos, ouça” (Mc 4, 9). Assim foi com a reformulação realizada por Alan Moore no Monstro do Pântano.
O Monstro do Pântano (Swamp Thing) foi criado Len Wein e Berni Wrightson em 1972 para a DC Comics: tratava-se de um cientista, Alec Holland, que pesquisava uma fórmula para a regenaração vegetal em um laboratório junto a um pântano da Louisianna. Vítima de um atentado, ele tem sua esposa assassinada e seu corpo carbonizado graças a uma explosão criminosa. Em chamas, Holland mergulha nas águas do pântano e desaparece. Tempos depois, emerge do mesmo pântano uma criatura humanóide, com seu corpo formado por lama e vegetais. Surgia o Monstro Pântano e suas histórias em busca de justiça e uma cura para seu estado geneticamente alterado. Apesar do sucesso inicial do título, foi ocorrendo um certo desgaste criativo nas histórias,que se tornavam repetitivas e, muitas vezes, incoerentes. Assim, no final da década de 1980 o título foi assumido por um então jovem escritor inglês que não apenas reformularia o conceito do personagem, mas abriria suas histórias para se tornarem um verdadeiro painel semiótico do espírito da época. Junto aos ilustradores Stephen Bissete e John Totleben, Alan Moore transformaria o Monstro do Pântano em algo, no mínimo, inesperado.
A primeira modificação elaborada por Moore foi na origem do personagem. Segundo o autor, quando Holland mergulhou nas águas lamacentas do pântano, ele já estava morto. A substância que carbonizou seu organismo, porém, desencadeou um fenômeno biológico no meio-ambiente: por isso, quem se ergueu das águas alguns dias depois da tragédia não foi uma pessoa com seu corpo transformado, mas o próprio pântano, pensando ser gente. Partindo desta premissa, Moore conferiu um novo status ao personagem. Ele não era mais um “monstro” em busca de cura, mas a própria natureza encarnada, em busca de sua identidade. E nesta busca a criatura viverá a crise de vazio e sentido da própria identidade humana em sua relação com o planeta, pois, na medida em que assume seu ser vegetal, ela vai percebendo o quanto permanecer humano a desvincula da relação com os demais seres vivos. E aqui entra a vanguardista compreensão de ecologia que encontramos nestas histórias.
Ao contar as histórias do Monstro do Pântano, Moore elaborou uma série de elementos simbólicos que, além de expressarem os problemas ambientais que já eram amplamente discutidos na época, abordavam a própria condição humana de predador em potencial, não apenas do meio-ambiente, mas de seus semelhantes. Fica claro, aliás, que as criaturas demoníacas enfrentadas pelo personagem ao longo das histórias nada mais são do que expressões da cultura de violência e opressão assumidas historicamente pela civilização ocidental. Ao mesmo tempo, o personagem principal inicia uma viagem de autoconhecimento que acaba revelando a qualidade de relações dos biossistemas terrestres, que, nas histórias de Moore são revelados como uma grande comunhão global de manutenção da vida. Assim, inicialmente, ao descobrir sua verdadeira identidade, o monstro entra em um estado catatônico, mergulhando naquilo que Moore denomina simplesmente de “verde” e, neste estado, se dá conta que pode se comunicar com toda a vida vegetal da Terra. Mais tarde, o monstro descobrirá que pode “morrer” em um lugar e “brotar” em outro, viajando pelo “verde” para qualquer parte do mundo. Nesse sentido, a poética da narrativa é deslumbrante, com Moore descrevendo como o personagem assume para ele todas as sensações dos biomas por onde rebrota. Aliás, a descoberta desta habilidade se dá sob a tutoria de um personagem criado especialmente para estas histórias e que, mais tarde, se tornaria mais famoso até que o Monstro do Pântano: são nestas histórias que aparecerá, pela primeira vez, o ocultista britânico John Constantine. Mais para o final desta saga, o monstro acompanha Constantine até a América do Sul, florescendo por aqui com toda exuberância das florestas tropicais. E é neste lugar do mundo que ele toma contato com o Parlamento das Árvores e descobre ser um Elemental, ou seja, um representante-protetor de algum dos elementos naturais que compõem a vida no planeta. O Parlamento era o lugar para onde os elementais se retiravam ao terminar seus dias e sua missão. É lá que o Monstro do Pântano, ao fazer uma série de perguntas, recebe a reprimenda que dá título a esse texto: “carne fala, madeira escuta”. E a “madeira” tem nos escutado desde que começamos a nos estabelecer na Terra.
Tudo isso, de certa forma, vai sendo expressado na Encíclica Laudato Si através de ideias-chave como Ecologia Integral, que nada mais é do que uma consciência ecológica que se inicia pelo próprio corpo como lugar de integração de toda natureza em nós ou de uma espiritualidade ecológica, que nos leva à percepção de integração com a Terra, ao invés de nos colocarmos acima dela. Ou seja: a novidade desta Encíclica, e isto a torna muito importante, se encontra na visão de ecologia como integração profunda com a vida do planeta, mergulhando no “verde” para escutarmos a madeira e as outras formas de vida.
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