Por Thuanny Bedinote
A História em Quadrinhos que iremos apresentar, Cuba: minha revolução, de Inverna Lockpez e Dean Haspel e José Villarrubia, tem valor testemunhal, contribuindo como um receptor de memória.
Podemos inferir inicialmente que as histórias em quadrinhos podem ser utilizadas para compreender uma realidade, já que sua criação remete a um anseio ou propósito especifico. O objeto de estudo, mesmo de forma breve, denota as mudanças sociais e políticas ocorridas em Cuba e seus reflexos nos quadrinhos. Desta forma, podemos considerar a fonte, importante para propor uma analise como material historiográfico para mostrar um contexto em determinada época.
No quadrinho citado, temos um roteiro autobiográfico de Inverna Lockpez, inserido na vida da personagem Sonya. Não sabemos o porquê se deu um nome fictício, ou se criou essa personagem para o relato, mas sabemos que a história do HQ é escrita e baseada na vida de Inverna. No enredo temos Sonya, uma jovem cubana estudante de Medicina, que deixa seu desejo pelas artes, para servir a seu país.
Mostrando o otimismo da jovem pelo movimento revolucionário, sacrifica suas vontades para ser mais útil para o momento em que Cuba vivia. O próximo passo para auxiliar o movimento era se alistar na milícia revolucionária, onde receberia treinamento militar. A personagem inicia uma nova fase, onde acredita na proposta da Revolução Cubana. Durante o percurso uma série de ocorridos desvia e divide as opiniões da jovem.
O governo de Castro mostra uma postura de medidas autoritárias e burocráticas, conflitando com as crenças da jovem Sonya. Os dias na Ilha mudam de rumo, após a revolução e os cercos feitos pelo EUA, pressionam e desencadeiam o agravamento da economia. Onde a população sente os malefícios desse novo momento político, não apenas os problemas econômicos, mas as perseguições de possíveis alvos e traidores.
Em episódio descrito na fonte, Sonya como médica, acaba sendo enviada para o território onde são recolhidos os corpos e prisioneiros da batalha da Baia dos Porcos, em uma das levas, ela descobre que o antigo namorado estava lutando pelas forças americanas. Na tentativa de descobrir seu paradeiro, Sonya acaba sendo questionada por soldados e entregue aos superiores, por ter mostrado afinidades com os soldados inimigos. A personagem passa meses na prisão, sobre forte tortura física e psicológica. Com a influência de seu pai, que é médico antigo na Ilha e por meio de ligações e contatos, consegue convencer os militares de que ela não era uma traidora e estava a favor da Revolução. Neste momento é que percebemos uma tomada de consciência da personagem e propriamente uma redefinição de valores. Pois mesmo sofrendo tortura pelo regime que ela tinha crenças verdadeiras, ela não nega em absoluto os princípios revolucionários. Mesmo no sofrimento pós-cárcere, sem conseguir digerir os acontecimentos, ela se mostra disposta a tentar entender os métodos e por que aquilo aconteceu.
Em profunda análise de sua vida, Sonya e sua família começam a encontrar problemas para viver nas circunstâncias que era imposta em Cuba. A mãe da jovem, decide em ir embora com sua filha mais nova e seu marido, em vários momentos, tenta convencer sua filha mais velha de ir junto à viagem.
Mas Sonya ainda tem um sentimento de pertencimento a Ilha, e tenta se restabelecer no cotidiano daquela nova perspectiva de vida. Onde entra no curso de artes, mesmo ainda debilitada, pelos processos de tortura que ocasionaram dores e ferimentos graves em suas mãos, não abandona nesse momento a vontade de se manifestar por meio das pinturas.
O que a personagem não esperava era a censura interiorizada também nos meios de arte. Sonya percebe o autoritarismo e pleno cerceamento da liberdade criativa que passava as produções de diversos campos de instrução. A professora de artes do regime castrista declara: “Não vamos ensinar cubismo, nem abstração, nem surrealismo. Nosso povo precisa de imagens realistas.”. (LOCKPEZ, 2013, p.85). Essa frase apresenta o processo de ruptura entre o ideal da revolução, ainda presente em Sonya, e o curso que a Revolução tomava em Cuba.
A personagem acaba passando por diversas mudanças e vivências dentro da Ilha, até o momento que ela é consumida pelo medo e percebe que já não pertence mais aquele lugar. A HQ termina com sua viagem rumo a “liberdade” para a América. O fina não foi muito bem aceito por alguns conhecedores de HQS. A última imagem é de certa forma entendida como um exagero e piegas. Para saber um pouco mais da biorgráfia de Inversa, você pode acessar o seguinte link : < http://www.invernalockpez.com/bio/index.htm>
- Testemunho e Memória na Obra
Nossa fonte apresenta traços e informações comprometidas com o repasse de uma perspectiva dos fatos ocorridos em Cuba nos anos de 1950 e 1960. A jovem personagem da história em quadrinhos narra uma história, mostrando outros aspectos da Revolução Cubana, principalmente pontos negativos que marcaram sua trajetória.
A fonte tem como base o testemunho e a memória. Uma não existe sem a outra, a personagem faz um resgate das suas memorias para poder relatar os acontecimentos, segundo sua perspectiva.
As maneiras de expressar ou repassar essa recuperação de memória são vistas, por exemplo, nos patrimônios históricos. Essa atividade memorialista, pode ser percebida de maneira diversificada dentro dos campos da vida cultural, aparecendo esse interesse também no campo literário. Onde as obras biográficas, autobiográficas e de testemunham ganham maior espaço. Contribui o autor:
Elas implicam sempre num pacto entre aquele que conta ou escreve e aquele que ouve ou lê. Esse pacto enfatiza o conteúdo de verdade do que está sendo transmitido e a esse relato chamamos de literatura de testemunho, gênero que abarca, num primeiro plano, memórias, depoimentos, autobiografia, onde alguém, no presente, remete à experiência passada. (WALDMANN, 2010, p.86, grifo do autor)
Podemos compreender o testemunho como uma tentativa de manter, ou compreender uma memória, por vezes, dolorosa ou traumática. Pode-se compreender que “o testemunho também é de certo modo uma tentativa de reunir os fragmentos do ‘passado’ (que não passa) dando um nexo e um contexto aos mesmos.”. (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 2)
Na obra, Cuba: minha revolução, vemos as dificuldades de prestar o testemunho de uma memória tão sofrível. O simples ato de recordar, traz consigo o reviver/revisitar uma parcela do seu passado, tal atitude advém da necessidade dos atores sociais que não almejam o silencio, que não vão se calar, representando assim a angustia do relato.
O testemunho, enfim, tem o “[…]. sentido de aliviar as angústias e, assim, criar o solo ou a promessa de um futuro. São narrativas catárticas que enfocam a dor, o sofrimento, as injustiças cometidas a pessoas inocentes.” (WALDMANN, 2010, p.86). Vemos todo esse teor testemunhal logo na nota de abertura da fonte aqui estudada:
Há aspectos da minha vida que preferi esquecer porque a lembrança seria dolorosa demais. Apesar disso, me surgem relances de fatos por que passei e, enquanto eu os reconstruía, descobri que o testemunhal é importante para os ideias e para a persistência do espírito humano, assim como o do meu. (LOCKPEZ, 2013)
Compreendendo que a memória, ou ainda, o ato de rememorar “está sempre ancorado a um presente.” (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 5). Vemos que Inverna encontra-se inseria dentro do aspecto da metamemória, onde “[…]. cada indivíduo cria da sua própria memória, o conhecimento que ele tem dela e, por outro lado, o que ele diz dela. […].na sua forma coletiva, ela é a reivindicação partilhada de uma memória que se supõe que o seja.” (CANDAU, 2005, p.99)
Entretanto, vemos que a metamemória da cubana Inverna, vai de encontro com a memória oficial cubana, aquela que cristaliza e enaltece a Revolução que apresenta a Revolução Cubana como exemplo de luta e vitórias para toda uma sociedade.
Podemos concluir que não existe uma cristalização da memória, mas sim múltiplas memórias. Que por vezes podem contradizer a memória oficial, mesmo que essa possua dispositivos, ou instrumentos, que cristalizem tal discurso. A valorização ou não valorização de uma memória encontra-se vinculada, muitas vezes, a sua relevância para os grupos detentores de uma memória oficial. Como vimos na obra em si, o testemunho dolorido da médica cubana não entra nesses critérios. Posto que suas memórias problematizam de forma diferenciada uma faceta da Revolução, mostrando que um único evento possuí diferentes quadros sociais.
Lembrando que esse texto tenta fazer uma aproximação da fonte com conceitos e campo da História. Não temos a intenção de colocar como correto, ou errado o conteúdo da História em Quadrinhos, trabalhada. Entende-se que a História pode ter inúmeras representações, seja do receptor, ou do transmissor. Aqui se fez importante e pontual apresentar o material como uma fonte apita a ser utilizada na criação de conhecimento. Cuba: minha revolução, pode ter causado alguma antipatia por parte de determinados autores, alguns citam de maneira negativa, a imagem final em que Sonya embarca no avião rumo aos EUA e considera que está indo ao encontro de sua liberdade.
Independente das opiniões a obra tem sua qualidade, não apenas artística, mas também pelo seu cunho histórico e principalmente de testemunho. Deixemos que cada leitor tire sua própria conclusão e tenha sobriedade para entender a História de Cuba e a História de Sonya.
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